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SENSO PROPRIETÁRIO. AFINAL O QUE É ISTO?
20 de Agosto de 2020
SENSO PROPRIETÁRIO: MUITOS ACHAM QUE EM UMA EMPRESA DE SUCESSO OS COLABORADORES PRECISAM TÊ-LO; PORÉM, AGIR COMO SE FOSSE DONO É, OU NÃO, A MESMA COISA QUE SENTIR-SE DONO? HÁ SUTIS DIFERENÇAS QUE FORAM EXPLORADAS PELO AUTOR.
O colaborador deve ter um “senso proprietário”, deve agir como dono. Deve se sentir como se a empresa fosse sua. Já faz algum tempo tenho visto esta “proposta” como um comportamento que os colaboradores deveriam ter em relação às empresas em que trabalham.
Desde as primeiras vezes que a escutei, tal proposta me causou estranheza, pois sempre foi muito claro para mim o que é ser dono e a diferença entre isso e ser participante de uma empresa como colaborador. Quer seja em multinacionais, nas quais a figura do dono é mais distante e até fluida, como em empresas de um único proprietário ou em empresas familiares, com a presença dos acionistas no dia a dia, ser proprietário é algo bem diferente do que ser colaborador.
Nas empresas multinacionais, especialmente as de capital aberto, a figura do dono é, de certo modo, até questionável. Nas empresas com esta característica em que trabalhei, costumava-se referir ao “dono” como as “senhorinhas de cabelo roxo” representadas pelos múltiplos acionistas que fazem a base da economia norte-americana, ou seja, os milhares de proprietários de ações das grandes corporações.
Nestes casos realmente era necessário que o primeiro líder “personificasse” o dono da empresa, pois geralmente ele tinha a palavra final ou a decisão das recomendações que até eles chegavam. É verdade que sempre subordinado à aprovação final do board da empresa e, às vezes, à assembleia de acionistas. Daí em diante, todos os demais líderes, globais ou locais, eram representantes dos valores e princípios que regiam aquela empresa no mundo.
Há, porém, empresas (geralmente locais, de pequeno porte, entre as quais tive o desafio de ser proprietário de uma) em que o “dono” tem presença física, no dia a dia, participando como executivo; e também em empresas familiares de maior porte, nas quais os donos estão presentes nas reuniões de conselho e até em alguns cargos executivos. Na figura do dono real e presente é que se sente realmente a diferença de ser colaborador ou dono.
Primeiramente, fiz uma busca para descobrir a origem da proposição de que os colaboradores deveriam se sentir como donos.
Como quase tudo que temos em nossas teorias de administração, não demorei a encontrar uma proposição vinda dos Estados Unidos. É a famosa “atitude de OWNERSHIP”. Estudando um pouco mais, entendemos que tal atitude é a combinação do estado de propriedade “OWNER” com a condição, o sentimento e até o caráter que faz o sufixo representado pela palavra “SHIP”.
Percorrendo a literatura acabei encontrando uma infinidade de atitudes e proposições, vindas da vasta e pródiga indústria de teorias de administração norte-americana e que temos importado, muitas vezes sem filtro algum.
Uma outra proposta é que através do senso de OWNERSHIP o funcionário atingiria o EMPOWERMENT, pois diante da atitude de dono ele estaria preparado para ter poder de decisão e responsabilidades que ultrapassariam até seus cargos hierárquicos.
Acabei encontrando até o uso de conceitos de responsabilidade civil transportados para a administração privada como ACCOUNTABILITY, que seria, dentro da mesma esfera, a capacidade do colaborador se responsabilizar por atitudes mais comprometidas com a causa.
Diante de tudo isso, comecei a me perguntar se é justo ou lícito propor e até – em alguns casos – cobrar dos colaboradores que tenham sentimento de dono e se sintam como tais.
Ser dono ou proprietário é uma condição muito peculiar, principalmente em nossa economia capitalista. O dono ou empreendedor toma para si o risco do empreendimento. Na maioria das vezes motivado por um sonho pessoal, atribui a si próprio uma missão social e leva à frente a construção de uma empresa, ou empreendimento, que envolve não só a si como outras pessoas.
Para tanto, ele compromete recursos pessoais e até familiares. Compromete também o seu tempo, na maioria das vezes ultrapassando as chamadas horas de trabalho, invadindo noites, fins de semana e até períodos das supostas férias.
Diante disso, a contrapartida é um poder legítimo de tomar decisões pessoais, escutando ou não a terceiros. Esta é a prerrogativa e a contrapartida de ser dono: ter a palavra final sem necessariamente dar satisfação a outros, ter a palavra definitiva.
Daí vem minha inquietação. É justo propormos ou até cobrarmos de nossos colaboradores que tenham sentimento de donos?
Parece-me mais uma daquelas teorias, até certo ponto maquiavélicas, em que se propõe algo que no fundo é uma, para usarmos uma linguagem mercadológica acadêmica, sacanagem.
Sim, não acho justo pedir aos nossos colaboradores que tenham o sentimento de dono. Porque sabemos que eles na realidade não têm a posse, as responsabilidades e os direitos, portanto, não são os verdadeiros donos.
Se por um lado não colocaram recursos próprios, em caso de prejuízo ou até ruptura da empresa não responderão com seus bens e até com os de sua família, não se endividando até que os compromissos sejam saldados. Se a motivação do início daquele empreendimento social não foi dele, por outro lado, ele não tem os direitos e as benesses do dono.
Eles não têm a última palavra em qualquer decisão. Não poderão usufruir de ganhos ilimitados quando a empresa der resultados excepcionais e, mais do que tudo, não poderão decidir se aquele empreendimento deve mudar completamente de rumo da proposição original ou até encerrar suas atividades conforme a vontade do dono.
Talvez o grande equívoco esteja na proposta. O que queremos é que os colaboradores tenham a atitude que um dono teria diante da empresa. O mesmo comprometimento e empenho tanto no dia a dia como no cuidado com o futuro da empresa.
Acho que a palavra Senso, que tem em sua etimologia sentir-se, tem sido injustamente empregada, no pedido aos colaboradores. O que todos nós, líderes de pessoas, deveríamos fazer é criar condições para que todos os colaboradores ajam como um dono agiria.
Diante disso, a grande questão é qual o papel dos líderes, para que os colaboradores das organizações tenham a tão esperada atitude de cuidar, agir e empreender como se fossem donos?
Gostaria de navegar, nesta segunda parte, no papel que os líderes devem exercer para fazer a ponte entre os colaboradores e as empresas, nesta tão almejada atitude proprietária.
Primeiramente acredito que em vez de cobrar de nossos colaboradores um senso proprietário, o grande papel do líder é dar a eles um contexto das empresas em que estão inseridos. Na maioria das vezes, estamos em organizações nas quais princípios e valores regem a razão de ser daquele empreendimento.
Ao entramos em uma nova corporação somos selecionados e avaliados por nossas competências técnicas. A ânsia de um novo emprego ou a tal promoção – geralmente acompanhada de aumento monetário – na maioria das vezes nos anestesia, em prejuízo da real avaliação do quanto os valores daquela nova organização batem com os nossos, pessoais.
Com o tempo e na vivência do dia a dia, vamos percebendo que, no fundo, o que rege aquela organização nem sempre faz sentido para nós, ou muitas vezes não estamos realmente compreendendo os caminhos que estão sendo seguidos pela organização. Aí é que o bom líder faz a diferença. Cabe a ele, mais do que dar orientações técnicas, explicar e contextualizar o papel e a responsabilidade de cada um na organização.
Não esqueço da vez em que, ao me encontrar com um querido amigo, o comandante Enio Dexheimer, que na época dava aula de formação para novos pilotos na querida e extinta Varig, comentei com ele: “E aí, ensinando os meninos a voar?” Ele prontamente me respondeu: “Não, todos eles já chegam aqui com muitas horas de voo, sabem quase tudo das técnicas de voar. Minha missão é ajudá-los a ser melhores homens, seres humanos mais dignos e responsáveis. Tento passar a eles o que é ser um comandante do ponto de vista do ser humano, qual a enorme responsabilidade em assumir o comando de uma aeronave repleta de vidas humanas”. Nunca mais esqueci aquelas observações – de como o papel de um líder pode e deve fazer a diferença na vida de seus subordinados.
Fazer o possível para explicar, contextualizar e tentar aproximar os valores morais de cada indivíduo com os da organização, na minha opinião, é o que de mais nobre e valioso cada líder pode e deve fazer.
Aí sim vem o tão esperado resultado que tanto almejamos de nossos colaboradores: que sejam EMPREENDEDORES. Acredito que haja uma certa confusão entre resultados esperados e a maneira de consegui-los.
Desejamos ardentemente que nossos colaboradores tenham um senso empreendedor nas empresas. A maneira que se encontrou para isso foi pedir que tenham um senso de propriedade, peculiar do dono.
Acredito que entendendo que meus valores pessoais têm a ver com aquela organização, compreendendo o contexto e sentindo que posso navegar confortavelmente naquele ambiente, aí sim posso ter uma atitude empreendedora.
Para tanto, gostaria de lembrar, finalmente, qual o papel deste líder, nesse contexto:
- Dar propósito a toda equipe e a cada um individualmente: “Cuidar de todos e de cada um, ao mesmo tempo”.
- Estimular com desafios técnicos e intelectuais, preferencialmente ligados a projetos.
- Dar segurança emocional para que seus subordinados possam ousar.
- Administrar os naturais conflitos do ambiente empresarial. Erroneamente por algum tempo se imaginou que os líderes deveriam eliminar os conflitos entre áreas e pessoas. Só um tempo depois compreendi que há atritos que são naturais e necessários nas relações. Assim como o carro só se move com o atrito dos pneus com o solo e as engrenagens só funcionam porque atritam com outras engrenagens. O papel do líder é administrar saudavelmente estes atritos, de tal forma que gerem novas alternativas, mas sem deixar que cheguem a um ponto destrutivo, comprometendo as relações e o desempenho. O que deve ser evitado a todo custo é o conflito. Este sim é o atrito que saiu do controle e passa a ser danoso nas relações entre as pessoas e, por conseguinte, nas organizações.
- Ser humilde e vulnerável nas relações, principalmente as pessoais em relação a cada indivíduo, para a criação de um ambiente de confiança mútua. Já tive de lembrar a um jovem líder, galgado a um novo cargo e lidando com sua nova posição com certa soberba, que ele tinha sido promovido profissionalmente em uma posição técnica, mas não fora promovido, perante seus subordinados, como pessoa. Aliás, seria muito conveniente levar em conta que, como pessoas, alguns de seus subordinados poderiam ser bem superiores a ele.
Os líderes têm, mais que tudo, de abrir espaço para momentos de elogios a seus subordinados. Tenho notado que chefes são pródigos nas críticas, mas absolutamente econômicos nos elogios. Não devemos ter medo de elogiar. Com medo do subordinado achar que pode abusar destes elogios para exigir condições e até aumento de remuneração, os chefes têm tido um olhar e uma comunicação muito mais voltada à crítica. Acredito no efeito exatamente contrário. O subordinado elogiado se sente mais seguro e motivado para continuar e ser mais empreendedor e criativo.
Os genuínos líderes têm no ato de servir sua missão. Os verdadeiros líderes servem a seus subordinados como sendo a sua maior tarefa. Eles cuidam genuinamente das pessoas que estão a sua volta.
“Quando amamos, cuidamos. Quando cuidamos, amamos”, como diz Leonardo Boff em suas sábias palavras.
Finalmente gostaria de concluir dizendo que, no momento adverso em que estamos vivendo, em que a entrega de resultados superiores tem assumido um papel primordial e até de sobrevivência, precisamos ter em mente que a cadeira do líder enfraqueceu. Sim, sabemos nos dias de hoje que em nenhuma organização os resultados vêm de uma pessoa apenas. Nunca os líderes precisaram tanto de suas equipes para entregar resultados.
São das equipes altamente coesas e com espírito empreendedor que temos visto surgir as mais novas e criativas soluções. Soluções que, no foco dos clientes, têm produzido relações duradoras e, em consequência, resultados admirados e na maioria das vezes superiores.
Como nos ensina nosso mestre professor da Escola de Marketing Industrial, Jean Bartoli, o novo líder tem de ser um pontífice, ou seja, um construtor de pontes.
Pontes entre as áreas da empresa e pontes entre as pessoas e a organização em que trabalham. Em vez de tentar destruir os feudos e as ilhas, a criação de pontes seria a melhor solução para aproximar as pessoas das empresas. E como foi dito em uma de nossas aulas recentemente: “Se não der para criar pontes, comece por construir pinguelas, mais tarde pontes surgirão”.
Na minha visão, o comportamento acima descrito dos líderes deve surtir mais resultados no sentido de criar um ambiente em que os colaboradores deem o melhor de si, sejam mais criativos, mais engajados, mais empreendedores e até tenham atitudes de dono, do que a proposta de pedir a eles que tenham o senso de dono.
Este artigo tem o objetivo de abrir esta discussão sobre as relações dos líderes e seus liderados e não ser definitivo em posições e direcionamentos, até porque, no mundo das relações entre pessoas, não há verdades absolutas e sim intenções verdadeiras.
CRISTIANO RAMOS DE SOUZA
FOI DIRETOR DE GRANDES EMPRESAS. ATUALMENTE É CONSULTOR DA JCTM MARKETING INDUSTRIAL E EXECUTIVO-PROFESSOR DA ESCOLA DE MARKETING INDUSTRIAL.